A Menina Que Roubava Senhas

Ela abriu de mansinho a porta do quarto e olhou pela última vez para o rapaz deitado na cama. Era cedo demais para acordá-lo, para dizer que estava indo embora. Como de costume, por levantar várias vezes na madrugada, andava em silêncio pela casa para não despertá-lo com algum barulho. Antes de sair, deixava apenas um bilhete desejando um bom dia. Mas, naquele dia, ela estava decidida a partir para sempre. Algum tempo atrás, Flor me falou que toda mulher fuxica as roupas do marido; que procura as marcas de batom; que busca algum vestígio de um crime presumidamente cometido; que vasculha as gavetas, as mensagens no celular e os e-mails no computador. E, como se não bastasse, algumas também invadem os pensamentos. Não duvidei, contudo, da fala da minha interlocutora, apesar de uma parte não significar o todo e tampouco ser uma exclusividade feminina. Há homens ciumentos e desconfiados também. Pensei calado que existem dois mundos que seguem paralelos na vida de duas pessoas que decidiram viver juntas. Por si só, já são dois sujeitos vivendo duas realidades, sendo parte dela compartilhada e outra propositalmente oculta, privada, íntima. Existe tudo aquilo que é dividido no espaço comum, que é dito, vivido, falado e experimentado. Mas, por outro lado, existe o mundo da subjetivação do indivíduo, daquilo que é particular, no universo restrito e reservado de cada um.

Outro dia, aflita e confusa, Flor, a doce menina que amadurecia precocemente, desiludida em seu dilema, disse que tinha descoberto tudo e que precisava da minha ajuda. Apressei-me em perguntar sobre o que, de fato, ela havia descoberto e ouvi que fora uma suposta traição. Margô, por sua vez, sugeriu que assuntos de mulher deveriam ser tratados com ela, porque tinha jeito e formação profissional. De certa forma, Margô tinha razão, eu era melhor botânico do que confidente, mas não me eximi em oferecer os ouvidos com brevidade à doce menina, depois de concluir que não devemos buscar o lado mais perverso no outro porque certamente iremos encontrar.

— Estava fuçando no mundo particular do meu namorado e descobri uma troca de mensagens. Ele se acha mais esperto do que eu. Tudo na vida dele é acessado por senhas, mas mesmo que codificadas eu consegui descobrir — ela comentou.

— Posso lhe fazer uma pergunta?

— Claro — ouvi.

— Você gosta dele?

— Eu gostava muito até descobrir a senha. Não compreendo: sou amada, bem tratada, bem cuidada, está tudo bem e até bem demais. É nessas horas que desconfio dos homens, papai — ela acrescentou.

Naquele momento eu já articulava algo para dizer, mas preferi ouvi-la por mais algum instante.

— Não sei se é insegurança da minha parte, se é baixa estima, se há loucura. As amigas dizem que a minha síndrome tem nome, mas agora não consigo me lembrar ao certo. Prefiro ir até o fundo das questões para ter certeza de que sou feliz e, muitas vezes, resvalo exatamente onde não queria.

Fiquei pensando que, para muitos de nós, não basta um conversível na garagem, um colar de diamantes no pescoço, as maçãs mais vermelhas e saborosas que se possa comprar na feira. Não. Haverá sempre a dúvida se merecemos ou não comer o melhor fruto e se devemos andar no melhor automóvel pela cidade. Sapiência que aprendemos com o tempo; devaneios e angústias da juventude. Haverá sempre a natural insegurança do homem. É intrínseco. Colocaram nele a dúvida, exatamente como acontecia com Flor, a doce menina.

— Me escuta um instante, por favor — pedi.

— Acho que estou um pouco aflita, papai.

— Tem obsessões que nos levam para lugar nenhum, e presumo que não seja lá que você queria chegar. De nada adiantará você quebrar códigos de segurança, decifrar criptografias, quebrar as chaves de acesso. De nada adiantará se você ligar insistentemente, se você marcar presença, se você controlar e sufocar. Se você procurar as marcas de batom na camisa do seu namorado, pode até encontrá-las, mas…

— Mas o quê? — ela insistiu impaciente.

— O que fazer com essa informação?

— É por isso que procurei o senhor. Definitivamente, não sei.

— Como eu disse inicialmente, se você está procurando algo para terminar o relacionamento, você vai encontrar e isso não faz sentido se você não quer se separar e o ama. De forma alguma estou concordando que o seu namorado possa trair você, ou que você possa trair o seu namorado, mas você parece procurar um motivo para se separar, e aí reside o problema. Peça para que ele seja honesto com você e, da mesma forma, seja honesta com ele. Se ele não entender o seu pedido, a breve relação já estará desgastada, ou ele sempre foi um malandro e você que não viu. Anteriormente você me disse que se sentia feliz ao lado dele, mas por que isso não basta? Você não se acha digna dessa felicidade? Você sabe onde residem os segredos mais secretos do seu namorado?

Houve um breve silêncio.

— Sabe qual a senha me esqueci de roubar?

E a doce menina de alma ingênua falou:

— A senha que dá acesso ao coração.

Comentários (8)

  1. “CARAAAAAACA! UAU.” Foram as primeiras palavras que me vieram a mente (e a boca) após ler o texto.
    Parabéns!!! Show!!!
    Esta última sim é uma senhora senha, dando acesso à caixa de surpresas que é o coração.

    1. Concordo que essa senha seja a mais difícil de ser decifrada, quebrada, corrompida. É ela que guarda os nossos maiores segredos. Talvez seja por isso que existe o eterno duelo entre o coração e a razão, desde Descartes, desde sempre. Como não conseguimos de um jeito, tentamos do outro e, muitas vezes, nos perdemos nessa tentativa. Sabe quem conseguirá? Aquele que nada tentar!
      Zé.

  2. Não aceito mentiras… sofreria, mas não continuaria mesmo! E já que ela procurava algo, é porque não estava segura e, se não estava segura, algo não estava bem. Posso até estar errada, mas nesse momento penso assim.
    A vida, às vezes, te dá uma sacudida pra você perceber que pode viver melhor. 😉

    1. Pensei em padrões: monogame ou poligame, de costume ou transgressor, casado ou solteiro, heterossexual ou homossexual, ocidente ou oriente, socialismo ou capitalismo, direita ou esquerda, bossa nova ou rock and roll, preto ou branco? Pensei também que a insegurança é intrínseca ao homem. E agora, estamos certos ou errados?
      Zé.

    1. Sabia que agimos de maneira extremamente parecida? Primeiro dividimos o mundo em dois gêneros: homens e mulheres. Depois, todos parecerão e agirão quase igual, quase que programados, consideradas as diferenças de cada grupo. Não fui eu quem disse isso, foi Platão.
      Zé.

  3. Nossa… como em tantos trechos me encaixo em muitas de suas palavras. Você sabe que muitas vezes me indaguei pq estava merecendo viver tantos momentos felizes que de tanto pensar esqueci de me sentir feliz!!!!!! Você como sempre nos tocando a alma com seus textos… eu tenho orgulho de ser tua amiga… espero ansiosamente pelo teu livro autografado!!!

    1. Penso que somos tão parecidos: eu, você, João e Maria. Mas, penso também, que devemos viver para ser felizes.
      Agora tenho a certeza de que uma pessoa lerá o meu livro, que bom!
      Zé.

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