A Menina Que Corria Feliz

O final do outono sopra um vento gelado por toda a região, fazendo com que os dias fiquem bastante agradáveis. É o prenúncio de um frio rigoroso que virá no próximo solstício de inverno, especialmente para as províncias localizadas no sul do país. Ao longe, vê-se que os primeiros ipês-amarelos começam a desabrochar para, logo mais, no pleno inverno, atingirem seu mais belo esplendor, contrastando com o verde escuro das árvores nativas remanescentes da vasta floresta tropical que um dia aqui existiu.

Flor comentou que se sentia mais disposta do que de costume e que estava feliz naquele dia. Ela observou também que o sol daquela manhã tinha um brilho intenso, dizendo que sentia vontade de correr. Pensei nos motivos necessários para que Flor e todas as demais pessoas se sentissem plenamente felizes e distantes do inferno astral que a própria inquietude provocava. A fala da menina, no entanto, chamou minha atenção. Ela tinha o desejo de correr quando estava feliz. Apressava-se ao encontro da alegria e simplesmente corria de felicidade.

Nos primórdios da nossa existência, o homem corria atrás de suas presas, isso quando ele não corria porque era justamente a caça. Nas antigas civilizações, o homem corria pela competição, pela simples vitória, pelo reconhecimento ou pela honraria. Hoje, corre-se com o patrocínio de uma grande marca, com atletas televisionados e treinados para a conquista do pódio, para se chegar em primeiro lugar. Tem o sujeito mais comum que corre para queimar calorias, para o condicionamento físico, e muitas vezes pelo simples prazer da atividade.

Na vida cotidiana, corremos por vários motivos e a lista da corrida pode ser infindável: corre-se contra o tempo, corre-se para levar vantagem, corre-se de cobrador, corre-se para chegar a um compromisso com hora marcada, corre-se atrás do ônibus, corre-se para não perder a mulher amada, a amante, a namorada. Corre-se também para o salto, corre-se para o mergulho, corre-se para a partida e a chegada, corre-se para se salvar ou salvar alguém, e corre-se por motivo nenhum. No entanto, a menina corria exatamente quando estava mais feliz.

No inverno, o trabalho com as flores parece pausar brevemente, apesar da rotina diária na limpeza do terreno na remoção das ervas daninhas; na atenção necessária ao sistema automatizado de irrigação, e na drenagem para que não ocorra uma inundação, como acontecera no passado, afogando quase um terço do plantio de bromélias, cuja raridade levava anos e anos para germinar e florir. Com mais tempo livre, nessa época, mergulho nas minhas maiores felicidades, para as quais corro em disparado. Sinto um prazer enorme no trabalho e na lida com as flores, com a horta comunitária, com a poda das árvores espalhadas pelos terrenos adquiridos nos últimos anos que, por serem loteados, transformaram a nossa moradia num pequeno e lindo sítio. Logo ao fundo, encostado numa pequena fonte de água natural, que desce do pé da montanha, uma videira desponta seus primeiros galhos robustos que, bem logo, estarão carregados de frutos.

Outra felicidade para mim são as artes e meus escritos, pelos quais correria sem nenhuma sombra de dúvidas. Gosto de ir ao cinema, gosto de assistir bons programas na televisão, gosto de ir ao teatro e também de alugar filmes na antiga e resistente locadora do bairro. Gosto ainda de literatura. Gosto muito de livros e leio os estilos mais diversos possíveis, mas gosto especialmente de crônicas. Quanto aos meus pequenos textos, e as minhas breves anotações, de certa forma, são um registro precioso daquilo que sinto e penso e que, ora e outra, confidencio secretamente com o roseiral. Deste modo, me sinto mais completo nessa busca incessante, pela qual quase todo homem corre, incluindo a Flor, que é a felicidade.

Lembro-me de que pela sétima série do colegial, mais ou menos, escrevi um texto — em verdade um poema — que me rendeu alguns bons elogios e uma nota dez. Era um texto simples, mas com narrativa densa e equilibrada, que chamou a atenção da professora. Recordo-me até hoje o que ela disse, em alto e bom som, para que a turma toda ouvisse: “Se esse texto realmente for seu…” — veja bem, ela duvidou — “guarde-o para um dia publicar”. Lembro-me também que na época do Natal, era eu o escolhido para escrever as mensagens de boas-vindas, os votos de felicidade que eram largamente distribuídos naquela época do ano. Papai Noel deve ter lido muitas cartinhas minhas, escritas de forma anônima, para atender aos pedidos das minhas tias, mas nunca os meus. Sempre havia alguém que me pedia para escrever palavras bonitas e, especialmente, algo que tocasse o coração do presenteado e do Papai Noel. Eu escrevia com muito gosto.

Algumas pessoas se sentem bem quando leem, viajam, desligam-se, transcendem. Outros, por sua vez, externam bom astral e experimentam a felicidade quando saem para dançar, quando aceleram suas taxas de serotonima na malhação, quando cantam ou, por fim, quando correm como a Flor. Quando penso na lógica da felicidade, acabo por concluir que ela é completamente ilógica, única e desigual. Que cada um de nós experimenta a felicidade de maneira distinta. Para uns, ela pode ser física, palpável, concreta. Os afortunados, na sua maioria, experimentam-na de forma material. E, para todos os outros, para a grande maioria, ela certamente é mais abstrata, emocional e sensorial.

Comentários (9)

  1. Entre lágrimas, em pleno escritório, sinto-me alegremente homenageada. Identifiquei-me com essa menina, e sabe por quê? Uso sempre essa expressão ‘vontade de correr’! Engraçado que nunca me dei conta disso, apenas me autoreconheci.
    Por que será que sinto essa vontade de correr? Não sei… Acho que é porque vivo correndo, para afazeres alegres, porque na semana me limito a uma sala de um escritório. Lá no fundo, parece ter lógica.
    Quero ser a menina deste paradoxo e ser muito feliz. Quero correr por horas com você, de mãos dadas dentre as nuvens.
    Obrigada meu amigo.
    Te amo pra sempre!!!

    1. Quando escrevi esse texto eu realmente pensei em você. Visitar as minhas lembranças me aproxima de ti, traz a saudade, e me faz bem. Qualquer dia desses eu passo por aí e, juntos, vamos correr por esse mundão afora.
      Zé.

  2. Deu vontade de sair correndo, e correndo, e correndo, e só parar quando não aguentar mais. Só parar quando as células do corpo estiverem completamente renovadas. Se para uns isso é felicidade, acho que conseguimos construir a lógica, sem nada preconcebido, antecipado ou conceituado. Teresa.

    1. A vontade de correr parece ter provocado euforia em toda a gente,
      E essa vontade de correr aumenta,
      E aumenta também a alegria, e os sorrisos.
      Aumenta a vontade de viver e de ser feliz!
      Zé.

  3. Me deu vontade de correr agora.
    Ser Feliz é o que todos nós buscamos, tem pessoaas que passam a vida inteira nesssa busca, mas o que elas nao sabem e que a felicidade esta dentro de cada um de nós, basta deixar fluir.

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