Garras de Adamantium

Gosto muito de ir ao cinema e assisto os mais diversos gêneros e estilos, com alguma preferência para os filmes de Zefirelli, Coppola, Almodóvar, Woody Allen e também Tarantino e Hitchcock. Outro dia, porém, saí da sala de cinema cheio de vontade de ter as garras do Wolverine. Enquanto assistia ao filme “X-Men Origins”, minhas mãos suaram de molhar a palma. Dava vontade de lutar contra os mutantes do mal, contra os traidores, numa instigante cognição de pensamentos sobre a deslealdade e a infidelidade. No filme, Wolverine foi traído diversas vezes. Pobre mortal, ainda não atingi o estágio soberano do saber perdoar uma traição. Também duvido que nós tenhamos essa capacidade em sua plenitude, sem que se guarde um mínimo de mágoa, de rancor. Quando me lembro da bondade de algumas almas personificadas como seres humanos, logo me ocorrem Chico Xavier e Madre Teresa. Eles sim souberam perdoar, mas, como sabemos, nosso estágio evolutivo é infinitamente inferior e estamos longe demais dessa virtude.

Acho que uma das frases mais célebres e conhecidas sobre a traição é a de César, o Grande, quando disse na Assembleia, logo depois da apunhalada, fitando firmemente os olhos do seu traidor: “Até tu Brutus!”. Em “X-Men”, a mocinha Silver, a namorada de James, tem o dom da persuasão. Silver encanta o mocinho para salvar a sua irmã mutante dos experimentos do maldoso general Stryker. Num primeiro momento, parece que Silver trai Wolverine, mas, mais adiante, é revelado que ela estava sendo chantageada. O mais incrível é que, como em quase toda ficção, a mão que salva o mocinho, antes dele ser engolido pelo grande buraco negro, é justamente a do oponente, do rival. De modo que o cara estava pagando o favor de um crédito, um serviço prestado no passado.

Lembro-me de uma namorada que tive aos quinze anos de idade, numa época em que florescia os sentimentos mais puros de quem pretendia se enamorar. O jovem sujeito, porém, não sabia nada sobre as relações humanas, tampouco sobre a paixão entre um homem e uma mulher. Inacreditável foi o fato de que a vida roubou a história em quadrinhos e jogou a minha amada nas mãos de quem eu julgava ser o meu melhor amigo. Sofri à vera, à época, sem mal saber como agir nem reagir com a dupla traição, da amada e do amigo. Meus sentimentos oscilaram tristezas e o pensamento impiedoso desejava a vingança. O tempo passou e, depois de muitos anos, tive o prazer de bater um papo com a mesma garota. A carinha já não lhe era mais a mesma, nem o sorriso, nem a juventude, nem ingenuidade. O tempo havia deixado suas marcas em nós dois, mas principalmente nela que parecia ter envelhecido antes do tempo. Hoje ela tem dois filhos lindos, mudou de profissão algumas vezes, e se diz realizada. Pelo o que entendi, contudo, continuava sonhando em encontrar o verdadeiro amor de sua história.

A vida é sábia e, muitas vezes, os movimentos para o qual somos conduzidos acabam nos surpreendendo, apesar de, muitas vezes, só compreendermos muito tempo depois, no exato momento em que nos distanciamos. Não obstante, chamei aquele amigo do passado para uma pequena reunião na casa de meu pai. Era uma comemoração dos seus sessenta anos de idade, à época. Naquela noite, estávamos desarmados, com os corações purificados pelo tempo de vida, pela alegria e pela saúde que papai gozava. Meu amigo, contudo, não compareceu. Apenas enviou em mensagem a notícia de que andava muito ocupado. Assim como eu, ele também envelheceu com o tempo, e soube pelas más línguas que ganhou uma bela barriga e muitos cabelos brancos. Já se casou duas vezes e teve uma filha. Imagino que muitas Silvers cruzaram o caminho do meu ilustre amigo, mas causava-me espécie e curiosidade em saber se o sujeito vivia feliz. Penso que de todas as traições da vida, no entanto, a que mais me causa inquietação é a traição de um amigo. A traição de amores jamais poderia ser medida em escala menor, obviamente. Talvez ela seja ainda mais dolorosa e nem caiba comparação, uma vez que confiamos nossa mais profunda intimidade, que nos despe de conceitos e vontades, desnudando-nos diante do parceiro, creditando os nossos mais puros sentimentos e cumplicidade. Assim como a traição de um amor, a traição de um amigo nunca é esperada. Demove-me um grande prejuízo a ideia de ser enganado por alguém em quem depositamos a mais sincera confiança, seja lá em que campo admitir. Seja na relação, no convívio diário, na simplicidade de um gesto, numa entrega desinteressada, numa chave oferecida, num bloco de anotações confidencias, na senha da sua conta bancária. Não importa. É como alimentar na boca o mais cruel dos vilões. É se ver impotente diante da própria inocência. É ser apunhalado como César.

Contudo, tive duas épocas na vida em que enfrentei uma interminável crise profissional por falta de trabalho e dinheiro. Quando comentei que na ficção o bandido pode pagar um débito havido no passado, me ocorreu que essas duas pessoas, num dos momentos mais críticos da minha vida, me ofereceram trabalho. Isso aconteceu justamente quando eu mais precisava. Teve o dia em que eles me estenderam a mão, apesar de eu ainda me achar a vítima de toda essa história. Para meus traidores, guardo as minhas garras de adamantium, se vou usá-las ainda não sei. Para meus dois amigos, guardo os meus sinceros agradecimentos. A vida é sábia e não tarda. Talvez ela tenha propositalmente me separado deles, me oferecendo assim um esplêndido e admirável destino ao lado de Margô.

Comentários (2)

  1. Rapaz,
    A traição é, com certeza, um dos maiores dramas sentimentais da humanidade. Lidar com a traição não é uma tarefa fácil. Além de doer muito, ela também nos obriga a tomar certas decisões, mas a vida é assim. Há quem não acredite na boa fé do perdão da traição. Sinceramente acho que os amigos de verdade estão ao teu lado e, definitivamente, nunca irão te magoar.

  2. A traição ensina tanto para a nossa vida. Lamento que ainda não aprendi tudo que deveria. Guardo um misto de sentimentos: de um lado tristeza e de outro alegria… OOO Vida… E nem mesmo o SILÊNCIO DO MEU QUARTO me faz esquecê-los. Tenho receio que estou me tornando vingativo ou, quem sabe, não conseguindo deletar certas ocasiões. Mas… tenho descoberto que a pior vingança é a de si mesmo, ela impossibilita a paz que precisamos para o nosso coração. E de garras, farpas e machucados a vida segue seu percurso natural. São estágios invevitáveis de nossa vida e de nossos dias. O bom disso tudo, que antes de ser traído, já tenho me afastado (quando percebo, claro). Não posso evitar traições! Porém, tentarei evitar situações que não trazem prazer ao “silêncio do meu quarto”, lugar sagrado.

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