A chuva que cai sobre o telhado produz um som contínuo que embala o sono de toda a gente, numa estação que iniciou gelada e fria. O inverno sopra ventos vindos do Hemisfério Sul. Na grama, o sapo coaxa e as cigarras que invadem essa região em dezembro, só voltarão no próximo solstício de verão. Cada qual, debaixo do seu edredom, enrosca um pé no outro ou no pé do outro para se aquecer e dormir. É tarde e ora ou outra ouve-se os passos dos sujeitos de guarda-chuvas que passam apressados, bem próximos à janela que dá para a calçada da casa. São vistos ao se espiar pelas frestas largas da madeira ou pelas frestas da mata-junta. E, quando os cães ladram, vários outros farão o mesmo no vizinho e no outro vizinho, e assim o latido ecoará pelo bairro inteiro. Seguiram noites de frio ameno, típicas dessa época do ano, quando as estrelas pareciam multiplicar e intensificar seu brilho na escuridão infinita. E, ora e outra, ouvia-se os passos das gambás que resolveram se aninhar próximas à caixa d’água, na lateral esquerda acima do telhado. Assim que a chuva cessou, Flor foi confirmar o que propagava a meteorologia, na esperança de que o dia seguinte amanhecesse com sol para o passeio na trilha, numa dessas montanhas que cercam a região.
— Você está vendo a quantidade de estrelas que começam a invadir o espaço, papai?
— Dizem que depois das chuvas a atmosfera se mostra mais límpida, revelando um céu de estrelas exatamente igual ao que estamos presenciando — respondi.
— Você consegue ver as Três Marias?
— Ficam bem ali — disse, apontando.
— Ao centro?
— Acima do Cruzeiro do Sul.
— É melhor o senhor não apontar — ela sugeriu.
— Não vá me dizer que dá verruga na ponta do dedo — lembrei e rimos juntos.
— Não são lindas?
— Você sabe distinguir entre um planeta e uma estrela, minha filha?
— Suponho que os planetas sejam os pontos mais brilhantes e os que aparecem maiores — ela deduziu.
— Se você observar, verá que as estrelas pulsam intermitentes e sua cor oscila entre o prata, o vermelho, o amarelo e o azul. Já os planetas emitem uma luz contínua e brilhante, parecendo um pouco maior do que as estrelas, localizados no cinturão.
— Que planeta deve ser aquele ao sul?
— Aquele é o planeta Vênus, mais conhecido como a Estrela Dalva, a estrela do pastor.
— O que será que existe além dessa imensidão?
— Você viu a pequena bola de fogo que caiu a leste? Era uma estrela cadente. Vamos fazer um pedido?
Ambos fechamos os olhos, por um breve instante, e cada qual fez um pedido, secretamente.
— Pelo visto, você fará um belo passeio amanhã. A meteorologia dessa vez não errou na previsão. Será um dia bastante limpo e ensolarado.
— Vamos entrar, papai? Preciso preparar a roupa e alguns acessórios para a trilha. E está muito frio aqui fora.
No dia seguinte, uma densa nevoa tomou conta de léguas adiante, encobrindo toda a visão a poucos metros de distância. Talvez o passeio de Flor se transformasse numa arriscada e perigosa aventura. Preocupava-me a subida numa montanha rochosa, com pouca visibilidade. Nos arredores, várias pessoas caminhavam pelo passeio delimitado entre os troncos grossos das árvores centenárias, que rodeiam todo o bairro e quase sumiam por entre a neblina que prenunciava um dia de sol quente. Às seis da manhã, religiosamente, ouvíamos os sinos da pequena igreja da comunidade, dispensando o despertador. Sobre o fogão, a chaleira aquecia a água que passava o café coado, parecendo coisa de antigamente e enchendo a casa do aroma e do perfume do café.
Naquela manhã, acompanhei Flor no desjejum, antes do tão esperado passeio.
— Dormiu bem, minha filha?
— Sinto-me bastante disposta.
— Você viu a névoa que faz lá fora?
— Não será problema para o passeio. O plano é aguardar até que ela baixe. O instrutor não seria imprudente ao expor a nossa turma.
— Não é perigoso, Flor?
— Fique tranquilo, papai. Já não sou um bebê e sei me cuidar.
— Quando criança, bebê de carrinho que você era, eu não sabia o que fazer para não ouvir os teus resmungos, sabia? O frio da noite fazia doer meus pés e mãos.
— Fui um bebê chorão, fui?
— Amarrava uma ponta de um cordão no meu pé, e outra no carrinho, para embalar o teu sono.
— Verdade? — ela duvidou.
— Se eu parasse, ouvia o teu choro e só me restava embalar.
— A sua bênção, papai!
Fui olhar as gotículas que se formavam e que pingavam das folhas pelo orvalho da manhã. A grama parecia se estender feito um tapete úmido. No pouco chão batido que restava, vários formigueiros se formavam por todo o canto. Achei estranho que as roseiras já tivessem abotoado tão cedo, prevendo que esperariam o calor da próxima estação. Era o ciclo da vida que fazia brotar seus filhos, que mais tarde voariam distantes, desbravando assim novos terrenos, outras montanhas, e os mistérios do mundo.
Que delícia esse texto.
Que maravilha fazer parte desse mundo.
Como comentamos essa semana, tantas pessoas tem muito mais, mas será que elas tem essas estrelas, essa chuva, esse soar do sino?
Obrigado por fazer parte desse mundão ao meu lado.
Amo você!
Vou lê-lo para sempre… e quando tiver 96 anos, talvez com a visão cansada, estaremos tomando café ou vinho, uma vez por semana, para que me conte as suas aflições literárias. Te adoro. Beijos e paz.
Para transformar sentimentos em palavras é preciso muito talento, e você tem. Também é preciso muita sensibiliade, para sentir a vida, e você tem. Para que sejamos completos é preciso que nos encontremos, é preciso que nos conheçamos. Acompanho teus passos e me alegro pelos teus caminhos. É nos detalhes da vida que somos mais felizes.
Zé, estes encontros são sempre muito especiais. Com eles crescemos e percebemos o sentido mais profundo de existir. Descobrimos o tesouro da própria espiritualidade e percebemos o que realmente é importante… com eles escolhemos as estrelas que vão brilhar no nosso céu. O teu texto é como uma lágrima, que evapora e ganha os ares, que umidece a brisa e purifica o vento, que enche as nuvens e vira tempestade… e traz de volta a esperança, não deixando congelar os nossos corações.
É assim, como estar vivendo a história tamanho o jeito de realidade que você empreende no discurso do texto. Ai que vontade de viver desse jeito. Em parte, me remete à minha infância. Tudo de bom, né? Você, ainda, quer voltar para o mundo do aperta aqui e ali?
Que máximo Zé! Quase pude sentir o frio! A imagem de um dia frio que nunca vi, ficou na minha cabeça. Um gramado cheio de neve.
Mas como essas formigas resistem ao frio? Pensava que elas mal saíssem num tempo assim.
Poxa, meus pais tinham um sítio com um fogão a lenha, aqui em Itaboraí, era muito legal.
Quanto aos planetas: são os pontos de luz coloridos que não piscam (se olhar com atenção verá que as estrelas piscam). É interessante notar que há uma variação de cores de acordo com a idade da estrela e que, como diz um filme, olhar para o céu estrelado é como ver uma reprise.
Bjs! Su.
Owm… so sweet!
Oi amigo! Passando aqui para prestigiar tuas reflexões. Quando olhamos para o universo, para o céu estrelado… nos sentimos “pequenos” e inúmeras perguntas sinalizam nossa cuidadosa atenção. O que nos torna “grandes” é a certeza que de que não estamos sozinhos e que não somos “partes” desnecessárias. Cada um de nós, da mesma forma como as estrelas, somos e fazemos parte da imensidão que é o nosso universo. Pequenos e Grandes!
Um abraço em ti, pequeno e grande Joseph.
Que história deliciosa! Acompanhei tudo tão de perto que juro ter sentido o cheiro da madeira molhada!
Boa tarde, meu lindo! O que dizer do teu texto? Uma delícia! Principalmente porque nesse momento que o leio, o telhado reproduz o som daquela chuva pesada de inverno, naqueles dias nublados que te pedem um cobertor, um chocolate quente nas mãos e um bom filme. Nossa aqui tem coisas muito gostosas mesmo, né? Só fica faltando a companhia de um amigo tão especial pra completar essa tarde tão preguiçosa. Um bjão fica com Deus e muita inspiração pra você.