O Homem Que Copiava

Era uma fila imensa para ser atendida. Pelo meu cálculo, acredito que esperei por quase uma hora. A senhora à frente, um pouco mais jovem e acompanhada do marido, rezingava em voz alta as mazelas da vida. Quanto a mim, não tenho o hábito de atender ao telefone em público, preferindo os espaços reservados, o que dirá contar as minhas particularidades em público. Pela longa espera, contudo, as minhas costas começaram a doer. Coitada da minha coluna — pensei — que comprimida reclamava.

Quando jovem, lembro-me que sofria de fortes dores nas costas, sem compreender muito bem se vinham da coluna ou dos rins. Mamãe dizia que era friagem, o que se confirmava nos dias de muito frio. A verdade, porém, é que o corpo todo doía, justo eu que ainda tinha uma vida inteira pela frente. Atualmente, fortifico os músculos da lombar com exercícios, contudo, parece que a idade transferiu as dores para os ombros, os joelhos e os pulsos, fazendo-me passar boa parte do dia dolorido e fadigado. A velhice tem dessas coisas, vantagens e desvantagens. Por um lado, ela nos traz a sabedoria. Muitas vezes, somos admirados e respeitados pelo quanto sabemos, pelo tanto que vivemos, a ponto de nos tornarmos mestres, sábios e professores. No entanto, padecemos pelas mazelas e moléstias do corpo, cujos reflexos dos músculos e articulações, agora, não respondem adequadamente.

Enquanto esperava ser chamado para o atendimento, observava um senhor esguio, franzino, extremamente magro, com um óculos de lentes muito grossas cravado no nariz e nas orelhas. Constantemente, ele passava de um lado para o outro, dentro de um uniforme azul marinho, com uma pasta debaixo do braço. Logo deduzi que ele trabalhava ali. O sujeito mancava de uma perna, mas a sua agilidade chamava a minha atenção. Seus cabelos brancos e a pele bastante enrugada, revelavam que ele já era bastante vivido, contemplando pelo menos oitenta anos de experiência e idade. Não demorou muito, observei que o tal senhor foi até a copiadora com uma pilha de papeis. Copiadora não é um objeto de difícil manuseio, bastando apenas colocar a página sobre o vidro, baixar a tampa e apertar o botão iniciar. Aquilo, porém, me fez lembrar de que papai nunca quis usar o cartão do banco porque nunca soube lidar com a máquina de autoatendimento. E, distraído na quantidade de cópias que o senhorzinho executava, com a destreza de um jovem rapaz, a fila pareceu andar. As pessoas que estavam à frente, continuaram resmungando pela longa espera, sem notar o homem que copiava. Serviços, num geral, nessa cidade, são péssimos. Não sabia se reclamar adiantaria. Não que concordasse que aquela longa espera fosse aceitável, pelo contrário, era desrespeitosa, mas, assim como todos os sujeitos, eu precisava esperar. Reclamar não resolveria, não daria jeito, e a compressão da coluna vingativa parecia aumentar. Mas, de tudo que ouvi, o que mais chamou minha atenção foram as falas do simpático velhinho.

— Tudo bem com o senhor? — perguntou uma funcionária que chegou para também usar a copiadora.

— Tudo ótimo, minha filha! — ele exclamou.

— Como foi à viagem?

— Não é todo dia que viajo com a minha amada senhora para a Inglaterra. O meu inglês já não anda lá essas coisas, mas estava muito boa, minha querida — respondeu o velho senhor, sorridente.

Ouvi quase todo o diálogo que veio em seguida e fiquei impressionado com aquela figura que, com uns oitenta anos de idade, apaixonado, levara a mulher para passar uns dias na Inglaterra, nos arredores de Londres. Segundo ele, o voo não fora muito confortável porque viajara na classe econômica e o tempo de cruzeiro sobre o Oceano Atlântico pareceu uma eternidade. O tempo e a idade, entretanto, trazem sabedoria — confirmei ao observar a cena e o diálogo do velho senhor que copiava e que, enamorado, foi passar uns dias na Europa.

Saí daquele lugar pensando naquele homem e, por alguns instantes, me comparei a ele, concluindo que algumas coisas em minha vida precisavam mudar com certa urgência. A verdade mais sincera é que fui surpreendido no primeiro olhar, diferentemente dos outros sujeitos da fila que com razão rezingavam a longa espera. Lembrei-me de que quando jovem, enfrentava as mesmas dores que hoje enfrento e que, certamente, daqui para frente, elas irão piorar, é o ciclo, não tem jeito, apesar da possibilidade de amenizar a dor dessa passagem. Imaginei, porém, que se aquele senhorzinho tivesse pressa para que a pilha de papeis que copiava acabasse; que as cópias fossem rapidamente concluídas, a brevidade o aproximaria do fim. O sujeito havia vivido pelo menos oitenta anos e, se não tivesse pressa, pelo contrário, se tiver disposição e trabalho, talvez, viveria ainda por muitos anos para realizar aquela função na copiadora e para realizar outras viagens com a senhora amada. Se meu corpo doer de novo — concluí —, pretendo voltar a minha atenção para os pequenos detalhes da vida, para que aquilo que vivo de bom no presente perdure e floresça, permanecendo por muito tempo. Assim, por melhor sorte da vida, na velhice que se aproxima, inexorável, continuarei cultivando e colhendo flores, as mais belas, uma após a outra, sem pressa, mas com sabedoria e disposição, exatamente igual aquele homem que copiava, seguindo assim até o fim.

Comentários (10)

  1. Oi Zé, lendo o seu texto eu lembrei do meu avó. Reflexo no qual eu me espelho. Lembro do rosto cujo sorriso me tocava, e que de mim tirava toda a tristeza. Seu sorriso era pacífico, belo, amoroso e deixava transpassar tudo o que aquele homem havia sido em vida. Ele tinha uma disposição invejável, e no auge dos seus quase 90 anos ainda tinha esperança, e buscava sua felicidade. Lembro uma vez que eu estava muito triste, e ele com toda sua sabedoria e amor de avô, apenas olhou nos meus olhos e me disse: Não fica triste não meu neto, olha para mim e deixa que a minha felicidade contamine o seu coração.
    Penso que o meu avó sempre acreditou na vida, na sua felicidade, no amor e por isso ele se tornou um velhinho disposto, com a alma jovem, um velhinho feliz.
    Que possamos nos cuidar para sermos velhinhos bonitinhos e bem-humorados. Beijos.

    1. Pena que não conheci o teu avô. Imagino que ele tenha sido um velhinho muito simpático. Pouco conheci os meus, também. Lembro-me mais do meu avô paterno e muito pouco do pai da minha mãe. O vô Hugo era pedreiro e fumava palheiro. A imagem que tenho é dele pendurado num andaime, segurando um pá e fumando. Que saudades senti. Tomara, guri, que possamos chegar lá no finalzinho e recordar com alegria a vida, e querer viver como se fôssemos garotões.
      Zé.

  2. Me identifiquei totalmente com o seu texto, meu amigo. Pude viajar deliciosamente nas suas palavras, tanto que se eu encontrasse com esse velhinho na rua poderia me dizer capaz de reconhecê-lo, como tantos que graças à Deus existem.
    Sempre fui uma adoradora dos mais velhos, mais vividos. Minha vó faleceu em maio e até a hora de sua passagem ela continuou me ensinando sobre a vida. Ela ficou internada em uma enfermaria de um hospital e tive o privilégio de passar uma noite lá com ela e mais 4 velhinhas lindas. Que delícia! Que lição de vida que minha vó me deixou aos 45 do segundo tempo dos seus 92 anos de vida.
    Linda história a sua!

    1. Antes de tudo fiquei feliz pela tua visita ao Blog. Tenho escrito pouco por estar concentrando energias em outros textos. Já tenho quatro peças de teatro saídas do forno. Qualquer dia quero que você leia. Ah… vou visitá-la no teatro, soube que você está em cartaz. Seja sempre feliz, pra quando chegares lá na velhice ter muita alegria pra recordar. Muitos bjos.
      Zé.

  3. “Aproveitei como se fosse a minha primeira viagem”, disse o senhor que poderia tê-la aproveitado como se fosse a última, dada sua idade. Mas preferiu dizer que aquilo que desejava poderia ser novidade; poderia ser vivido como se fosse a primeira vez; poderia ser bom.
    Que bela observação a sua. Em vez de reclamar da fila, prestou atenção no mundo.
    Bjos. Teresa.

    1. Gostaria de saber onde fica aquele botãozinho que liga o “bem estar” e desliga o mal humor. Manteria o meu melhor estado, sempre ligado. Acho que só assim perceberia as cosias boas da vida e tudo àquilo que causa incômodo em mim, passaria despercebido.
      Zé.

  4. Você sabe que não tenho muita paciência com pessoas de mais idade, exatamente pelo que você falou: a carência deles. Mas neste texto pude ver com seus olhos, tamanho valor que essas pessoas têm na vida da gente. Quem sabe seja por isso que eu não tenha aprendido mais, pela falta de convivência com eles, afinal não tivemos avós presentes.
    Parabéns. Que texto lindo! Ainda tenho muito a aprender com você.

    1. Concluí que os observadores e atentos ao homem apredem mais. Não sei se apreendem ou armazenam essa sabedoria, mas alguma sensibilidade há de ser tocada, e com sorte aplicada.
      Zé.

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